Hoje, como todos os dias úteis, e repito úteis, levantei-me ao som do despertador cujo o toque já foi mudado mais de cinco vezes no espaço de uma semana. Tento desesperadamente enganar o consciente adormecido que já reconhece todos os seus toques e o cansaço que já alucina por descanso, mas o resultado é sempre o mesmo. Adormeço mais dez minutos.
Sentei-me na cama
a espancar os últimos rasto de preguiça do corpo, e no cérebro ainda me queimava a discussão que se desencadeou na reunião do dia anterior com o
senhor “Não me chateies e deixa-me lá faltar depois de amanhã”... Fechei os olhos.
Ainda sentada na cama senti uma comichão enorme no fundo das costas. Joguei os dedos com a intenção de
coçar e eis que senti uma camada escamosa. Mais uma vez abominei o chocolate que tinha devorado depois do jantar. Por mais que me provoque alergias pavorosas nunca resisto.
Arrastada pelas horas abri a torneira para o duche, olhei-me ao espelho. Não me consegui ver com o vapor da água quente. Lambi-me. Olhei em volta e tropecei em alguma coisa. Levantei-me, virei-me e voltei a tropeçar, amaldiçoei o tapete que passa a vida enrolado nos meus pés. Optei por ignorar tudo, mas tudo mesmo e preocupar-me exclusivamente por me pôr a caminho já atrasada. Espremi a pasta para a escova de dentes e lavei aquilo que eu pensava serem dentes... e não umas enormes
mandíbulas de onde brotavam (...) alguém ou um vulto passou por detrás de mim. Eu vi, desfocado no espelho mas vi. Paralisei de medo. O que raio estaria comigo dentro da casa de banho. Mais uma vez. Direita, esquerda.
Lambi-me, lambi-me e voltei a lamber-me e única coisa que me saltava ao sentido cheiro era o pequeno almoço. Respirei fundo e enchi-me de coragem. Voltei-me (...) e um GRITO ensurdecedor saiu-me dos fundos mais recônditos da garganta. Com escamas intervalada entre o vermelho e o azul cobalto, uma enorme cauda surgia do fundo das minhas costas e enrolava-se no chão com extremidade terminada em seta. Decerto neste momento estava a alucinar só podia... estaria ainda sonhar dentro da minha própria realidade.
Seguiu-se uma enorme dor numa das omoplata e a seguir na outra. Guinchei e senti nos cabelos o vento de umas pequenas asas feitas de cartilagem e uma fina membrana de pele...
chegou a minha hora, só podia!!!Voltei a gritar de horror e um lance de chamas saiu de dentro da minha boca. Peguei fogo à casa de banho. Na mistura de sensações sem saber como agir numa situação em que me transformava em qualquer coisa não humana levantei voo, instintivamente. Voei pelo tecto carbonizado. Lambi-me e apercebi horrorizada da minha pobre figura... olhei-me e vi-me coberta de
escamas intervaladas de vermelho e azul cobalto, umas enormes garras substituíam-me as mãos e os pés. Até um chifre tinha no alto da cabeça. Num voo alado dirigi-me à Serra para me esconder.
(Já me imaginava a entrar no escritório para começar a trabalhar e todos a correr apavorados à minha frente. O mais engraçado seria tentar escrever no teclado com umas unhas enormes e amareladas. Melhor ainda seria o
senhor “Não me chateies e deixa-me lá faltar depois de amanhã”... a perguntar-me corajosamente porque tinha chegado atrasada. Até aqui tem uma certa piada).
Desviei a cauda e sentei-me numa das pedras que circundam a serra. Chorei. Olhei para a minha barriga enorme e para as minhas pernas minúsculas que terminavam nuns pés cheios de altos escamados e com unhas curvadas para dentro, ainda por cima amarelas!! Voltei a chorar de desgosto e apenas lamentava o facto de estar transformada
num descomunal Dragão. Lambi-me. Ainda não me tinha visto por inteiro, mas só de me imaginar a lágrimas jorravam de uns olhos anormalmente redondos e enormes, que se fizesse um esforço até a meu próprio rabo eu conseguiria ver. Lambi-me e saboreie as minhas lágrimas que eram doces. O estômago roncou. Lambi-me.
Pus-me de pés e olhei num potencial pequeno almoço, decerto com o estômago cheio conseguiria pensar melhor no que fazer e como agir. Com um andar esquisito, aliás bastante esquisito, cambaleava para os lados cada vês que esticava uma das minúsculas pernas e tropeçava nas minas próprias unhas percorri o pequeno bosque onde eu estava(...)
Um sorriso enormes pregou-se nos meus lábios. Bem, até hoje nem sei se tinha lábios. Melhor mesmo será dizer que um gigantesco sorriso se pregou na minha gigantesca bocarra, quando pensei no sabor que o
senhor “Não me chateies e deixa-me lá faltar depois de amanhã” teria??!!!
Com as minhas reacções a uma velocidade superior às do meu cérebro, voei por instinto. E quanto mais me tentava controlar mais as asas batiam em direcção a um local que eu tão bem conhecia. Parei do lado de fora do edifício. Lambi-me e procurei a janela exacta. E como um perdedor faminto farejei a minha presa e voltei a voar mais para cima. Pairei do lado de fora da janela certa (...)
Lá estava ele, sentado na sua poltrona de
pele de crocodilo (
senti uma tristeza enorme por aquele meu primo distante transformado em cadeira) ao de leve toquei no vidro com a unha. Ele virou-se e deixou cair o telefone...
O despertador voltou a tocar. Tinha adormecido os habituais dez minutos. Despachei-me o mais depressa que pude e pus-me a caminho. Parada no transito e já a tentar inventar uma desculpa para mais um atraso, comecei a recordar-me de um sonho
com dragões. Era engraçado desculpar-me dizendo-me que me tinha transformado num
dragão. (no mínimo acabaria no fundo desemprego).
Quando entrei no edifício estavam todos descontraidamente a conversar. Achei estranho, porque o
senhor “Não me chateies e deixa-me lá faltar depois de amanhã” por regra geral percorre os corredores e coloca toda a gente sentada no seu devido lugar... a produzir. Como precisava mesmo de faltar depois de amanhã não esperaria nem mais um segundo, subi as escadas e dirigi-me ao seu gabinete:
- Alice, o
senhor “Não me chateies e deixa-me lá faltar depois de amanhã”, está ai?
Alice olhou para mim com um ar de espanto...
- Mas tu ainda não sabes???
O pobre
senhor “Não me chateies e deixa-me lá faltar depois de amanhã”, tinha-se sentido mal. Alice cuja a secretária está mesmo colocada junto a sua porta e as suas tarefas separam-se entre levar-lhe cafés e dar as más noticias ao pessoal, ouvira um ensurdecedor berro vindo de dentro do seu gabinete. Apressara-se a entrar na sala e já o encontrou desmaiado e em estado de choque.
- Alguma notíca que recebeu ao telefone!!! Disse ela com gravidade
...
E fiquei a pensar seriamente:
- mas afinal depois de amanhã posso faltar ou não?