Ela, uma velha dançarina de Can Can despida de folhos, bailava dentro de um “maiô” vermelho, muito coçado, um rabo esquelético e pendurado. O ventre descaído de sete gravidezes transformadas em pequenos anjos que vivem lá em cima, encolhe-se agora de emoção e reboliço. Uns beiços finos quase inexistente e borrados de batom cor de rosa, incham sumptuosos na direcção oposta. Arregala uns límpidos olhos pretos e reprime estupidamente aquilo que sente.
Ele, um amolador de tesouras, facas, canivetes e navalhas trazia nos ossos os nós do oficio doloroso e na pele o negrume da roca. A carne nitidamente esquartejada de objectos tortos e afiados jamais iria alisar na perfeição. Consertava ainda chapéus de chuva com varetas partidas, a injusta causa de ter a vista esquerda completamente vazada e pálpebra descaída, contudo não se lhe esconde a verdade vomitada apenas pelo outro único olho. Os dedos eram os necessários para se entrelaçarem nos dela e o coração pingava-lhe aos pés um liquido que vinha não se sabe de onde.
Perto deles um pequeno macaco vestido de marinheiro comia amendoins fritos de mel e sal. Lambuzado beliscava-os cada vez que um pacote se esvaziava. Pedia mais, muito mais com a dentuça escancarada e a patorra estendida. E nem assim, aquela figura peluda os distraia daquele olhar, que quase no fim eles estavam a aprender.
Envergonhados ainda por um namoro recente, deixam-se ficar num silêncio cheio de desejos estimulados pelos sentidos. Tocam-se mentalmente e não tem coragem para o primeiro beijo que ainda não fora consumado. E se ele queria mais, muito mais senão um roçar de boca e língua. Afinal era humano e apesar de enrugado tinha tanto direito de cobiçá-la só para si, como todos os outro que não a alcançaram.
Impaciente e numa espontaneidade própria só dela pediu-lhe, sem conseguir controlar a voz para lá de trémula, que fechasse os olhos:
“- Pensa numa musica... Agora dança comigo!”
Cheios de sorrisos, levantaram-se e deslizaram da realidade coxa para lá de lá... ali no mesmo num sito onde passavam outras gentes outras vidas. Conhecedora que é das musicas de cabaré, o seu inconsciente foi buscar aquela que mais se enquadrava. A preferida a perfeita. A que se tornara bela naquele instante.
Que seria único e inesquecível... ainda não sabiam!!
No silencio do momento ouviu-se um pequeno cantarolar bem perto do ouvido, num sopro que causa arrepios. Conheceu aquela melodia soprada:
“- O Calhambeque, bi-bi, quero conservar o Calhambeque!!!”
“- Fim!” Suspirou.
“Eu queria-a... mas não a podia ter!!”
Disse-me ele enquanto acabava de concertava o meu guarda-chuva favorito. Não percebi a história. Ou melhor, não percebi porque me contou a mim. Tive vontade de lhe fazer mil perguntas que me ardiam na garganta... “Se é verdadeira?! se a dançarina existe?! quem tinha cantarolado a musica?! ... de quem era o macaco?!”
Mas... da mesma maneira que a começou a contar a história calou-se. “- Para si é de graça.”, disse ao mesmo tempo que esticou o guarda-chuva e se sentou na bicicleta sem cor e idade. Pegou numa gaita amarela e desceu rua abaixo...