Monday, January 30, 2006

Um dia e duas noites!!

Sentei-me em cima da mota das quatro rodas. Mentalmente verifiquei por uma ultima vez a lista das coisas que tinha dentro da mochila, não fosse ficar alguma em falta. Coloquei a mudança de arranque, e comecei a percorrer a primeira parte daquilo que me aguardava.
Para onde vou, a distancia é curta mas a estrada é difícil de percorrer. Ainda trago na lembrança a ultima vez que senti o duro sabor do asfalto na boca. A noite há já muito que caiu e esconde na escuridão aquilo que as luzes dos faróis não revelam, por isso a atenção tem que ser redobrada, não vá alguém ou alguma coisa atravessar-se na próxima curva.

Conheço aquela estrada de olhos fechados e já o fiz vezes sem conta... cada vez lá passo há sempre qualquer coisa nova que me congela o movimento e me faz ficar encantada. Trago nos bolsos mil avisos e sei que é perigoso... principalmente na minha condição feminina que eu adoro mas que tantas vezes me impede e proíbe. Desta vez com o capacete que me protege dos sussurros do lago triste, cujas margens lambem a berma da estrada, consigo abstrair-me de mitos e histórias que rodopiam na minha memoria, fugindo ao encantamento daqueles que por lá ficam depois do sol. E acelero na estrada sem olhar para trás, sentido nas costas o toque dos acenos.

Quando chego ao destino, ambos já se encontram sentados no limite da rocha com os pés pendurados para lá, bem ao lado do ponto geodésico. Paro a mota das quatro rodas, e corro em sua direcção pela noite... como é habitual sento-me sempre no meio dos dois, penso que tentam criar uma barreira de protecção, mas não me pronuncio.
O da esquerda olha-me com uns olhos que sei que são verdes e sorri em boas vindas. Devolvo-lhe o olhar e tombo a cabeça no seu ombro.

Aos poucos enrolo-me com as pedras e deixo-me despenhar lá em baixo. Misturo-me desfeita em areia no fundo do mar e fico por horas naquele mundo subaquático. Envolta em sons que nunca vou entender, envolta em correntes cruzadas de águas frias de um oceano gigantesco e poderoso, que ora me equilibra ora me desequilibra entregando-me de espírito aquela utopia.
Entre a noção do real e irreal flutuo para dentro de um outro mundo que me transporta de novo ao limite da rocha. Abro os olhos e fixo aqueles outros que sei que são verdes.

Aquele lugar é mágico e intenso, e jamais arranjarei palavras para descrever aquilo que me faz sentir ou até onde me leva. É intenso no cheiro, no toque na paisagem e nas cores. Envolvente cada vez mais no tempo de uma paixão partilhada com outros que dura à muito. Foram duas noites com apenas um dia para dormir... vivi o que não é explicável.
Hoje aqui sentada, em cada tecla que primo vai um bocadinho de mim e uma ínfima parte do que senti.
É muito recente e o meu espírito ainda anda por lá, deixando o meu corpo entregue a uma marcha ritmada ao som compassado do meu mundo material...

Friday, January 27, 2006

"LUCE"



O frio tira-me o sono... é a única altura em que consigo andar nas luzes e quanto mais frio faz, mais intensas são. Como quero aproveitar até acabar, deixo-me andar até o corpo aguentar...
A primeira vez que reparei que o conseguia fazer, foi numa noite em já dormia e bateram à porta. Resmunguei pelas horas tardias e arrastei-me para ir abrir. Ninguém para entrar. Voltei para a cama, e voltaram a bater. Cuspi as piores palavras que me bailavam na cabeça , e perguntei o que raio se passava?!

Embrulhei-me numa manta, trespassei a escuridão. Com o frio a rachar-me os ossos e a pele a encolher-se em múltiplos arrepios continuei a andar até me perder. Entrei em pânico... num choro compulsivo gritei por ajuda até não sentir mais a garganta. Em louca ansiedade percorri quilómetros e quilómetros naquela falta de clareza.

Foi então que vi, um ponto brilhante. Que mais tarde vim a aprender que se designava por “luce”. Agarrou-me na mão, e olhou-me... despiu-me de qualquer preconceito e levou-me de volta por um caminho diferente. Como num jogo de peças multicolor cujas as regras não podem ser ditas apenas seguidas, tive que copiar sem erros, todos os seus paços um a um até sentir uma liberdade extrema. A parte mais difícil de executar era nas falhas de luz, em que tudo ficava em suspenso antes de cumprir um salto maior que as pernas... mas hoje já o faço facilmente.

Conscientemente vou-me apercebendo que entro dentro de mim própria, numa maravilhosa viagem ao contrario.


(...descobri que afinal não sou cor de rosa por dentro. Sou cor de laranja, e tenho num cantinho um malmequer vermelho com um botão azul ...)

Thursday, January 26, 2006

... o tocador de flauta!

Olho para os altos muros que cercam a propriedade privada, e escolho o local mais adequado à minha estatura para subir... calculo alturas, quantidade de musgo podre e humidade para não correr o risco de escorregar.
Já no lado de lá percorro a expansividade do terreno com os olhos, e inspiro a excessividade de ar puro.
Oiço ao longe tocar arrastadamente seis badaladas. Na penumbra corro contra o tempo para não chegar atrasada ao meu encontro secreto com o tocador de flauta...

Vejo-o a subir o caminho dos castanheiros bravos até chegar perto de mim.
Quando chega, coloca os seus poucos pertences no chão e desembrulha cuidadosamente uma flauta de um pano de flanela azul.
Meticulosamente coloca os elegantes dedos de maneira a tapar com precisão os devidos orifícios e leva-a aos lábios. Dedilha-a como um auntêntico mestre e comove-se com cada sopro que extrai... chamo-lhe o sopro mágico.

Escondida por detrás do tronco de um velho Pinheiro, escorrego pelas minha pernas, encolho-me sobre mim própria e fico quieta sem fazer barulho. Bebo cada nota que se solta, e desejo ardentemente que nunca acabe. Qualquer som vindo de mim é o suficiente para o assustar e ele nunca mais voltar...

É um encontro tão secreto que o próprio tocador de flauta não sabe que faz parte dele. Já não me recordo a primeira vez que o vi. Penso que foi quando conheci o monge que meditava, e presumi erradamente que a musica exalava de dentro de si. Depois foi seguir pelo labirinto melódico e vislumbrá-lo numa das encruzilhadas. Não queria acreditar no que via, fiquei por horas a ouvi-lo. Desde então, como um vício sem o qual não se consegue viver, comecei a lá ir todos os dias, pressentindo que o encontraria...

Ouve um tarde que levei comigo uma outra pessoa, descrevi-lhe todas as regras do silêncio para não assustar o tocador de flauta. E partilha-mos o mesmo esconderijo.
Ela não enxergou... nunca mais quis voltar.

São muitos aqueles que vão lá secretamente, e se escondem como eu atrás dos troncos das arvores... penso que alguns também ainda não enxergaram, mas continuam a insistir em lá voltar até um dia isso acontecer.

Tuesday, January 24, 2006

Henric pote e o cálice de vinho

Eram cinco da manhã, e já o Land Rover amarelo percorria numa corrida louca aquelas Planícies. Como numa pista acidentada desviava-se em razias aos sobreiros pinheiro e acácias que iam aparecendo no caminho já pré definido para o efeito.
Parámos perto da barragem que já tão bem conhecemos, infelizmente tão vazia, que nem as chuvas de um mês a encheriam de modo igual à primeira vez que a vi. Saímos do Jipe para acalmar o estômago que se encontrava na iminência de rejeitar o pequeno almoço, e sentámo-nos nas pedras de xisto que circundam as margens da barragem formando autênticas bancadas de espectáculo.

Inspirei uma, duas três vezes. Deixei o cheiro das estevas, que deambula precocemente pelo ar, invadirem-me as narinas e observo o céu espelhado na magnitude das aguas paradas. Ao fundo num horizonte longínquo, os primeiros indícios de mais um nascer de dia começa a invadir numa velocidade pestanejante o tecto estrelado.

Estava na hora de voltar ao caminho. Mas não seria naquele instante. Porque o Land Rover ao qual chamamos carinhosamente “O submarino”, estava literalmente atolado nas margens da barragem, e quanto mais se tentava arranjar um solução mais o pobre “submarino” se atolava. Decidimos então ir à procura de ajuda. Ficaram três para trás.

Eu e outro começamos por nos dirigir em direcção ao sol. Caminhamos, mas verdadeiramente caminhamos muito. Mais ao fundo pareceu-me ver uma auto - caravana... no meio do cansaço ainda pensei tratar-se de uma miragem, mas arranjamos forças para correr, e era real. Dois cães ladravam... uma cadela zarolha, e um cão sem as duas patas traseiras arrastava-se pesadamente num carrinho improvisado com duas rodas. A porta abre-se, e de dentro da auto – caravana que parecia estar ali desde sempre, uma figura surge.

Alto, gordo (mas mesmo muito gordo), uma pança que forçava uns botões de uma camisa sem cor. A pele que já fora branca, agora vermelho cosido circundavam uns olhos azuis. De cabelo e barba enormes loiros, esboçou um grande sorriso de onde apenas avistei um único dente já sem saúde. Atrevo-me a dizer que tinha um aspecto feliz. Mas muito feliz mesmo.
Trazia uma malinha atravessada no tronco... desta tirou um cálice e uma garrafa de vinho. Com o cálice elegantemente preso entre o indicador e o polegar encheu-o de vinho e bebeu num só gole. Voltou a guardar tudo na malinha.
Imediatamente nos convidou para entrar e apresentou-se como Henric Wellinton. Feitas as apresentações declinamos o convite, e imediatamente lhe contamos o ocorrido.

Henric pôs um ar pensativo, procura uma solução. Pediu-nos as coordenada e dirigiu-se a um pequeno barracão. Quando abriu a porta desapareceu no escuro, ouviu-se o “relatim” de uma motorizada, e eis que Henric surge, montado no seu triciclo de certo com de mais de 60 anos, ferrugento com atrelado. Trazia posto um capacete cor de rosa colocado no alto da cabeça atado com uma corda ao pescoço e umas calças de cabedal coçado. Trazia o banco enterrado a meio do corpo... pensei que rir seria a pior coisa que poderia fazer naquele momento. Repetiu o ritual do cálice. Ordenou-nos em tom de mestre que entrássemos no atrelado e que ajudássemos os cães a subir igualmente. Acelerou em nuvem de pó e arrancamos em curvas, numa mirabolante velocidade de vinte há hora. O cabelo e a barba selvagem de Henric, esvoaçavam numa reviravolta contra o vento e o mesmo sorriso feliz esculpido nos lábios.
Não sei precisar quanto tempo demoramos...

Não consigo descrever a cara dos outros quando nos viram. Talvez a situação fosse perfeita para nos rasgarmos em gargalhadas... mas ninguém se atreveu.
Henric saiu do triciclo retirou os dois cães, repetiu o ritual do cálice e apresentou-se aos restantes. Sempre com um sorriso feliz, pediu-nos que nos afastássemos. Pegou numas cordas e atou-as ao pára choques.
Por incrível que pareça, não foi preciso muito esforço por parte do triciclo ferrugento para conseguir tirar o “Submarino”, posso até dizer que foi à primeira... Sorridente olhou para nós incrédulos, disse na sua língua que já estava. Da malinha retirou seis cálices encheu de vinho e distribui-os por nós. Ficamos sem saber que atitude tomar...

Nessa mesmo tarde voltamos para perto da barragem, onde existe uma enorme clareira. Sentado numa mesa vinda não se sabe de onde, estava Henric e os dois cães, mas completamente diferentes. A cadela já não era zarolha e o cão tinha as quatro patas. Tentamos Ignorar esse facto imediatamente, e pedimos educadamente para nos sentarmos nas restantes cinco cadeiras. Antes de responder retirou da malinha seis cálices encheu-os de vinho e distribui-os mais uma vez por nós. Elevamos os braços ao alto e bebemos de um só gole.

dedicado ao Henric...

Friday, January 20, 2006

Um lindo cisne...

Lembro-me de querer ser bailarina. E mesmo muita pequenina sonhava em ser “Prima Bailarina”. No meu quarto voava em passo inventados por todo o seu espaço total. Pegava nas panteras, ursos e coelhos de peluche e atirava-os ao ar em movimentos elegantes próprios da feminilidade de uma menina.
Os “pinipons”, “barriguitas” e “estrunfes azuis” serviam de publico, que aplaudiam com furor, a cada reviravolta dada na ponta do dedo do pé.
Ao fim de tanta palhaçada em frente ao espelho, e horas passadas em danças imaginárias com bonecos que não se queixavam do cansaço, os meus pais inscreveram-me nas aulas de ballet.

Todas as tarde sentava-me no passeio perto da escola meia hora antes. Não fosse eu chegar atrasada. E recordo como se de cima me estivesse a ver com cinco anos... com as minhas botinhas ortopédicas, cheias de memórias das canelas dos rapazes, uma saiinha plissada em xadrez, a chupar um granizado gelado de ananás. Acompanhada claro por um grande saco da “Betty Boop” cheio de equipamento de ballet...

Ensaiámos na nossa pequenez até à exaustão para um grande espectáculo que iria decorrer no Teatro Nacional D. Maria II.
Estávamos radiantes. Basta imaginar quarenta meninas juntas, com cinco anos, e ainda por cima histéricas com descoberta de uma nova magia de bastidores, camarins, maquilhagens, roupas e todos os adereços que a ocasião proporciona.

O espectáculo começou... mas esqueci-me de referir que segundo a “Mestra” eu sofria de um grave problema... era canhota... e então fazia os chamados “pliés” ao contrario.
Durante todo tempo até ao grande dia, lutei com a minha própria “canhotice”. Pintava a mão com cores ou atava lenços à volta do braço, de maneira a concentrar-me qual subiria em forma de arco.

Entretanto subimos ao palco, fofinhas e anafadinhas, dentro de uns fatinhos que imitavam cisnes. Sob um fantástico jogo de luzes e um publico enorme, correu tudo na perfeição... até à parte final do espectáculo.
Mesmo quando a excitação estava ao rubro, é que a minha verdadeira natureza venceu.

A peça terminava com os cisnes todos em cima do palco em “plié” virado para a direita... e mesmo no meio lá estava eu... um pequeno cisnes com um enorme sorriso a destoar com um “plié” virado para esquerda. Naquela adrenalina infantil jamais reparei na “Mestra” vermelha de raiva a esbracejar....

Rapidamente comecei a suspeitar das desculpas que os meus pais arranjavam para não regressar às aulas de ballet. Um dia o meu pai chegou com um grande embrulho debaixo do braço. Sentamo-nos ambos no chão e ajudou-me a desembrulhá-lo... eram as minhas sapatilhas de ballet emolduradas num lindo quadro cor de rosa. Recordo-me que não chorei...

Peguei na bicicleta e fui brincar com o Miguel, aquele que ficava tardes inteiras à minha espera, e eu nunca aparecia por causa das aulas de ballet. Recebeu-me de volta de braços abertos, e disse-me que eu era o cisne mais lindo que alguma vez tinha visto. E pedalamos em corrida até ao fundo do quintal...

Thursday, January 19, 2006

De regresso a casa...



Acordava todos os dias com a carne congelada e encharcada até à alma. Com os ossos perros a desdobrarem-se num barulho de porta velha, acendia a lareira num fogo que lambia a madeira em segundos. E aquecia-se.
Permanecia por horas dentro da casa, não fosse aquilo ser irreal. Porque qualquer movimento em chão falso, era o suficiente para cair, atravessar a fronteira dos mundos e nunca mais conseguir voltar. Era ali que se sentia bem.

Lá fora nos bosque e florestas brancos, brincam em histórias e fantasias os seus companheiros fictícios, inspirados em personagens fantásticas de notável beleza.
Na utopia da neve, raramente entravam príncipes ou beijos. Apenas uma única vez imaginou uma criatura vinda de outro mundo , que num beijo profundo a conquistou aprisionando-a em castelos feitos no vento... vento que se tornou em brisa. Gostava antes de se imaginar como uma substância incorpora.

Ela própria tinha a seu cavalo de gelo, que igualmente se alimentava de sonhos... era ele quem a transportava naquele devaneio. Flutuavam naquele mundo de neve até caírem na exaustão. Acontecia muitas vezes ultrapassarem o limite das nuvens, e perante um sol quente o cavalo de gelo derretia fazendo-a estatelar-se no lado de cá... felizmente no lado cá pouca coisa tinha que a fizesse permanecer por muito tempo, sentia-se livre por isso mesmo, e era essa liberdade que a elevava numa viagem de volta aquela que considerava a sua verdadeira casa....

Tuesday, January 17, 2006

Ténis(inhos) de cristal...

Naquela manhã acordei assim... apeteceu-me vá-se lá saber porquê, se calhar o meu subconsciente foi buscar uma simples frase que proferi na tarde anterior...
Subi as escadas para o sótão, em busca dos sapatos de salto alto que comprei de propósito para o casamento da prima da prima do avô da prima.

Vesti-me... sentei numa cadeira com o meu um metro e sessenta e qualquer coisa, quase setenta, e levanto-me para um mundo completamente diferente... um mundo ao qual acrescentei dez centímetro. E assim me joguei com uma altura descomunal para o dia que tinha pela frente.
De vez quando olhava para traz, estava sempre com a sensação que alguém me seguia com o mesmo passo num TOC TOC infernal...

O dia começou quando tudo teve que ser modificado. O banco do carro mais para traz, diminuir a altura das cadeiras, diminuir os pulos nas escadas, a lentidão para chegar a algum lado... já para não falar do andar esquisito, com as costa direitas e barriga encolhida, o peito espetado para a frente e claro o constante barulho TOC TOC.

Pela hora do almoço, comecei a sentir uma sensação de arrasto até ao restaurante, implorei por uma mesa vaga, e sentei-me pesadamente... Senti-me com uns oitenta anos quando disfarçadamente tive que retirar o pé dentro do sapato e permitir que desinchasse por momento... coitados... nem queria imaginar o que os meus dedinhos me diriam quando chegasse a casa.

Agora já tinha chegado à fase do “disfarça, e deixa-te estar sossegadinha!!”... fiquei quieta no meu canto e rezei para que não me chamassem durante a tarde para o que quer que fosse... mas como nem sempre todo as orações são ouvidas, lá ia eu, com um grande sorriso e a sofrer horrores cada vez que poisava o pé para efectuar um movimento tão simples que é o andar ... e sempre a ouvir... TOC TOC.

Finalmente sentada no carro... descalcei os malditos sapatos, liguei o ar condicionado para o mais fresco possível, e conduzi em direcção a uns ténis... meia dúzia de metros a frente vejo um “homenzinho” vestido de azul integral com um sinal de stop estendido para cima. Antes de parar tentei calçar os sapatos, mas a verdade é que os meus pés se transformaram em autênticos trambolhos e não cabiam. Tudo piorou quando me pediu que saísse do veiculo para verificar o porta bagagens... a partir daqui já mais nada há a contar... a minha pobre pessoa de pés descalços no alcatrão, um policia incrédulo, uma história que não consegui inventar em segundo e um papel verde na carteira.

Cambaleie furibunda até à porta de casa agarrada às paredes, peguei nos sapatos e espetei com eles no lixo para sempre. Ainda lhes parti o salto não fossem eles fazer mal a outro alguém.
Lindos, Juntinhos e arrumadinhos lá estavam eles... olharam para mim... eu olhei para eles, e juramos fidelidade eterna...

Thursday, January 12, 2006

Carregado de mim...

Quando o encontrei tinha acabado de explodir. Encontrava-se espalhado em bocados humanos pelo chão, alguns ainda flutuavam lentamente. Pensei para mim própria que dificilmente os conseguiria voltar a juntar... mas fiz silêncio.
Apanhei por entre dedos o seu espírito desorientado, amarrei-lhe um fio de lynon e prendi-o ao meu pulso, andava com ele como se de um balão cheio de hélio se tratasse.

Não sabia por onde havia de começar... em cima de uma mesa estendi uma folha de papel vegetal, pensei em moldes que já tinha visto num outro lado qualquer e improvisei...
Comecei pelo rosto. Apanhei os lábios o nariz e os olhos, que ainda na confusão da explosão expeliam lágrimas em catadupas. E moldei-os...
Acariciei-lhe o rosto já completo, e repousei-o no meu ombro.

Peguei numa outra folha de papel vegetal e copiei o tronco as pernas os braços, mãos e pés. Esculpi dedos sem esquecer as unhas e pedi-lhe o primeiro abraço.
Abraçou-me... estava vazio e silencioso por dentro, tinha-se transformado num pequeno monstro, desconfiado e estratega. Mordeu-me o braço numa dentada venenosa e escapuliu-me. Desesperada, cuspi as palavras que me queimavam a língua e amaldiçoei-me por não saber onde falhara...

Muito tempo depois vi-o. Escondido de tal aberração que se tornara estendeu-me a mão. Nela, vi o seu coração dilacerado em duas partes que pulavam em batidas desiguais, assustadas numa contrariedade de emoções. Peguei-lhe meticulosamente, com uma cola especial voltei a juntar as duas partes, com uma caneta de sangue, um a um fui escrevendo os nomes que ele me ia ditando... e coloquei-o no sitio.

Pediu-me que lhe explicasse toda a arte de um mundo novo... aos poucos ensinei-o a sorrir, chorar, sentir e amar. Maravilhou-se com as mais simples coisas que lhe mostrei e devolvi-lhe o espírito. Por fim soprei-lhe nos lábios uma parte da minha própria essência e partiu...

Há já bastante tempo que não sei nada dele... na gaveta ainda tenho guardado os moldes copiados nas folhas de papel vegetal e no ouvido o alerta constante de uma nova explosão...

Tuesday, January 10, 2006

Sítio sem coordenadas...




E sentados à porta da casa de quatro lonas, situada bem de frente para as torres abandonadas onde apenas deambulam os fantasmas dos derrotados, todos os dias eles vislumbram o pôr do sol.
Nas sombras ofuscadas pela noite imaginam criaturas de outros tempos, e nas escuras nuvens que à sua frente vão desfilando, deliram na ilusão das formas criadas no céu alaranjado... Entre conversas corriqueiras, risos francos espalham-se durante sete dias consecutivos num sitio sem coordenadas...

Thursday, January 05, 2006

Ontem transformei-me numa bruxa...

Ontem como numa manhã normal espanquei o despertador e arrastei-me para a casa de banho. Olhei-me ao espelho e reparei que tinha uma borbulha enorme na ponta do nariz. Amaldiçoei as duas barras de chocolate que comera no dia anterior e enfiei -me na banheira. Voltei a olhar-me ao espelho e nesta altura a borbulha tinha dois grandes pêlos espetados... não é possível, isto não me pode estará acontecer... vesti-me rapidamente e peguei nas chaves do carro. Tinha que ir urgentemente à farmácia...

Não, era demais... o meu carro desapareceu e no lugar dele estava uma vassoura, e ainda por cima com instruções de uso no cabo.
Tombei no chão e chorei desesperadamente, o que me estava acontecer.... nesta altura já estava com um rabo enorme, os meus pés aumentaram para o dobro do tamanho e a cada nova descoberta mais os meus olhos inchavam ...

Quando já não tinha forças para mais rendi-me às evidencias... olhei desconfiada para a vassoura e sentei o meu rabo de prateleira no cabo.... a vassoura voo... pensei no proveito que poderia tirar da situação e dirigi-me para lá... parei a vassoura flutuante no lado de fora da janela e umas palavras que nunca proferira antes soltaram-se dos meus lábios... agora é que era mesmo demais... que grande sapo gordo e repugnante em que ele se transformara sentado na sua cadeira de cabedal. Uma gargalhada estridente saiu-me da bocarra enorme e desdentada.... na euforia cai, perdendo os sentidos.

Ontem transformei-me numa bruxa. Lancei um feitiço de tal maneira engenhoso que hoje ainda oiço sapos a coaxar e o da sala ao lado ainda cospe bolas de sabão... MAS LÁ CONSEGUI AQUILO QUE QUERIA.... o pior foi voltar para casa na vassoura.

Tuesday, January 03, 2006

...mas correu tudo bem!

- Dá-me a tua mão!!
- Não consigo, ajuda-me!!
- Tens que te esticar, levanta o pé...
- Não posso, não tenho espaço.
- Bolas... pula!!
- Como queres que pule... caio de certeza...
- Então não te mexas... vou buscar ajuda...
- Não por favor, não me deixes aqui sozinha... vou tentar descer... espera...

Os cantos dos olhos já lhe ardiam de tanta angustia. Esperava a qualquer momento que ela se despenha-se no abismo de rochas que se encontravam na boca da cordilheira. Os braços pareciam ter encolhido e os dedos não alcançavam o alvo. Agora ela já descera pelo menos um metro, e continuava inalcançável...

O pé escorregou, e esfolou na parede o corpo por mais meio metro... a mochila caiu... rebentou-se lá em baixo no chão. No desespero as lágrimas começaram a correr, tentava esconder a face para que ele não visse. Naquele momento a vida parecia-lhe tão frágil, e não surgiam soluções...

- Estás bem?! Aguenta-te que vou buscar ajuda...
- Não consigo aguentar mais... espera... atira-me a corda que tens dentro da mochila...
- Não dá é pequena demais...
- Tenta... por favor os meus braços já não aguentam muito mais... tens que tentar...

Deitou-se na rocha e esticou-se com a corda, por pouco não lhe tocava na cabeça... em grande esforço ela tenta alcançar a corda, os dedos roçam levemente na ponta e num impulso agarrou-se a ela com todas as suas forças... ficando pendurada a baloiçar vezes sem conta, esmagando o corpo contra a dureza da parede rugosa... na boca sentia o sabor a sangue do nariz partido e nos braços a pele rasgada.... Agora só podia contar com a força dele...