Tuesday, January 24, 2006

Henric pote e o cálice de vinho

Eram cinco da manhã, e já o Land Rover amarelo percorria numa corrida louca aquelas Planícies. Como numa pista acidentada desviava-se em razias aos sobreiros pinheiro e acácias que iam aparecendo no caminho já pré definido para o efeito.
Parámos perto da barragem que já tão bem conhecemos, infelizmente tão vazia, que nem as chuvas de um mês a encheriam de modo igual à primeira vez que a vi. Saímos do Jipe para acalmar o estômago que se encontrava na iminência de rejeitar o pequeno almoço, e sentámo-nos nas pedras de xisto que circundam as margens da barragem formando autênticas bancadas de espectáculo.

Inspirei uma, duas três vezes. Deixei o cheiro das estevas, que deambula precocemente pelo ar, invadirem-me as narinas e observo o céu espelhado na magnitude das aguas paradas. Ao fundo num horizonte longínquo, os primeiros indícios de mais um nascer de dia começa a invadir numa velocidade pestanejante o tecto estrelado.

Estava na hora de voltar ao caminho. Mas não seria naquele instante. Porque o Land Rover ao qual chamamos carinhosamente “O submarino”, estava literalmente atolado nas margens da barragem, e quanto mais se tentava arranjar um solução mais o pobre “submarino” se atolava. Decidimos então ir à procura de ajuda. Ficaram três para trás.

Eu e outro começamos por nos dirigir em direcção ao sol. Caminhamos, mas verdadeiramente caminhamos muito. Mais ao fundo pareceu-me ver uma auto - caravana... no meio do cansaço ainda pensei tratar-se de uma miragem, mas arranjamos forças para correr, e era real. Dois cães ladravam... uma cadela zarolha, e um cão sem as duas patas traseiras arrastava-se pesadamente num carrinho improvisado com duas rodas. A porta abre-se, e de dentro da auto – caravana que parecia estar ali desde sempre, uma figura surge.

Alto, gordo (mas mesmo muito gordo), uma pança que forçava uns botões de uma camisa sem cor. A pele que já fora branca, agora vermelho cosido circundavam uns olhos azuis. De cabelo e barba enormes loiros, esboçou um grande sorriso de onde apenas avistei um único dente já sem saúde. Atrevo-me a dizer que tinha um aspecto feliz. Mas muito feliz mesmo.
Trazia uma malinha atravessada no tronco... desta tirou um cálice e uma garrafa de vinho. Com o cálice elegantemente preso entre o indicador e o polegar encheu-o de vinho e bebeu num só gole. Voltou a guardar tudo na malinha.
Imediatamente nos convidou para entrar e apresentou-se como Henric Wellinton. Feitas as apresentações declinamos o convite, e imediatamente lhe contamos o ocorrido.

Henric pôs um ar pensativo, procura uma solução. Pediu-nos as coordenada e dirigiu-se a um pequeno barracão. Quando abriu a porta desapareceu no escuro, ouviu-se o “relatim” de uma motorizada, e eis que Henric surge, montado no seu triciclo de certo com de mais de 60 anos, ferrugento com atrelado. Trazia posto um capacete cor de rosa colocado no alto da cabeça atado com uma corda ao pescoço e umas calças de cabedal coçado. Trazia o banco enterrado a meio do corpo... pensei que rir seria a pior coisa que poderia fazer naquele momento. Repetiu o ritual do cálice. Ordenou-nos em tom de mestre que entrássemos no atrelado e que ajudássemos os cães a subir igualmente. Acelerou em nuvem de pó e arrancamos em curvas, numa mirabolante velocidade de vinte há hora. O cabelo e a barba selvagem de Henric, esvoaçavam numa reviravolta contra o vento e o mesmo sorriso feliz esculpido nos lábios.
Não sei precisar quanto tempo demoramos...

Não consigo descrever a cara dos outros quando nos viram. Talvez a situação fosse perfeita para nos rasgarmos em gargalhadas... mas ninguém se atreveu.
Henric saiu do triciclo retirou os dois cães, repetiu o ritual do cálice e apresentou-se aos restantes. Sempre com um sorriso feliz, pediu-nos que nos afastássemos. Pegou numas cordas e atou-as ao pára choques.
Por incrível que pareça, não foi preciso muito esforço por parte do triciclo ferrugento para conseguir tirar o “Submarino”, posso até dizer que foi à primeira... Sorridente olhou para nós incrédulos, disse na sua língua que já estava. Da malinha retirou seis cálices encheu de vinho e distribui-os por nós. Ficamos sem saber que atitude tomar...

Nessa mesmo tarde voltamos para perto da barragem, onde existe uma enorme clareira. Sentado numa mesa vinda não se sabe de onde, estava Henric e os dois cães, mas completamente diferentes. A cadela já não era zarolha e o cão tinha as quatro patas. Tentamos Ignorar esse facto imediatamente, e pedimos educadamente para nos sentarmos nas restantes cinco cadeiras. Antes de responder retirou da malinha seis cálices encheu-os de vinho e distribui-os mais uma vez por nós. Elevamos os braços ao alto e bebemos de um só gole.

dedicado ao Henric...

8 comments:

Kiau Liang said...

Mas muito bonito mesmo.

rspiff said...

Tu fazes-me sonhar rapariga...e olha que não são muitos que o conseguem...rspiff é mestre dos sonhos...

miak said...

Fogo...que lindo!!!

miak said...

Já disse??

Lindo mesmo!!

kolm said...

Kiau, rspiff e miak... obrigada... transmitirei os vossos elogios Henric Wellinton... certamente irá retirar da malinha cinco cálices, encherá de vinho e distribuirá por cada um de nós! :)

rspiff said...

kiau, miak, rspiff e kolm juntos ao fim da tarde para beberem o vinho de Henric...gostei desta ideia...sairei das minhas sombras para estar com vocês...pode ser que seja um dia mágico...

Madame Pirulitos said...

A cadela deixou de ser zarolha depois de quantos cálices?:)
E são as palavras que criam as realidades. Que lindo!

mfc said...

Vinho quente com canela, uma lareira e muito boas companhias.

E uma conversa cálida, bridnada.