Thursday, January 26, 2006

... o tocador de flauta!

Olho para os altos muros que cercam a propriedade privada, e escolho o local mais adequado à minha estatura para subir... calculo alturas, quantidade de musgo podre e humidade para não correr o risco de escorregar.
Já no lado de lá percorro a expansividade do terreno com os olhos, e inspiro a excessividade de ar puro.
Oiço ao longe tocar arrastadamente seis badaladas. Na penumbra corro contra o tempo para não chegar atrasada ao meu encontro secreto com o tocador de flauta...

Vejo-o a subir o caminho dos castanheiros bravos até chegar perto de mim.
Quando chega, coloca os seus poucos pertences no chão e desembrulha cuidadosamente uma flauta de um pano de flanela azul.
Meticulosamente coloca os elegantes dedos de maneira a tapar com precisão os devidos orifícios e leva-a aos lábios. Dedilha-a como um auntêntico mestre e comove-se com cada sopro que extrai... chamo-lhe o sopro mágico.

Escondida por detrás do tronco de um velho Pinheiro, escorrego pelas minha pernas, encolho-me sobre mim própria e fico quieta sem fazer barulho. Bebo cada nota que se solta, e desejo ardentemente que nunca acabe. Qualquer som vindo de mim é o suficiente para o assustar e ele nunca mais voltar...

É um encontro tão secreto que o próprio tocador de flauta não sabe que faz parte dele. Já não me recordo a primeira vez que o vi. Penso que foi quando conheci o monge que meditava, e presumi erradamente que a musica exalava de dentro de si. Depois foi seguir pelo labirinto melódico e vislumbrá-lo numa das encruzilhadas. Não queria acreditar no que via, fiquei por horas a ouvi-lo. Desde então, como um vício sem o qual não se consegue viver, comecei a lá ir todos os dias, pressentindo que o encontraria...

Ouve um tarde que levei comigo uma outra pessoa, descrevi-lhe todas as regras do silêncio para não assustar o tocador de flauta. E partilha-mos o mesmo esconderijo.
Ela não enxergou... nunca mais quis voltar.

São muitos aqueles que vão lá secretamente, e se escondem como eu atrás dos troncos das arvores... penso que alguns também ainda não enxergaram, mas continuam a insistir em lá voltar até um dia isso acontecer.

4 comments:

rspiff said...

Coisas antigas perdidas no meu blog que tu me fazes lembrar:

- Uma vez escrevi "...Toco flauta em cima de um telhado, olho o céu e vejo que está cor-de-laranja e verde..." ( Tempo )

- Também escrevi sobre um rapaz que ouvia música e também havia uma flauta, embora não o tenha escrito, uma parte era assim "...A música já tinha parado, mas ele tinha a certeza que a tinha ouvido, mas pelos vistos só tinha acontecido na sua cabeça..." ( O rapaz que ouvia música )

Agora recordo estas palavras e penso se a inspiração não é sempre a mesma e apenas visita uma pessoa de cada vez. Deve ser por isso que eu não ando com muitas ideias, tu estás a escrever :-)

Gosto mesmo do que escreves...muito mesmo...

miak said...

Antigamente, achava que "era ou não era". Se não se se ouvisse, se não se visse, sentisse à primeira, não valia a pena.

Agora percebo a injustiça. E sorrio com os que tentam...

"continuam a insistir em lá voltar até um dia isso acontecer."

miak said...

Se trocarmos a ordem das letras de umas das palavras - kolm ou miak - (só de uma), ficam dois nomes do mesmo tamanho, em que as primeiras e últimas letras são iguais.

Não raramente dou comigo a pensar em coisas que, aparentemente, sáo da mais profunda inutilidade. E adoro!

Madame Pirulitos said...

Penso que se deve insistir. É isso a existência. Insistir sempre.Entre acidentes e muitos desencontros esse dia vai chegar.