Friday, April 20, 2007

Sobreviverei sem saber?!

Numa daquelas noites mornas que aparecem fora de época, por debaixo de um céu brilhante estranhamente ausente de lua lá estavam eles.

Ela, uma velha dançarina de Can Can despida de folhos, bailava dentro de um “maiô” vermelho, muito coçado, um rabo esquelético e pendurado. O ventre descaído de sete gravidezes transformadas em pequenos anjos que vivem lá em cima, encolhe-se agora de emoção e reboliço. Uns beiços finos quase inexistente e borrados de batom cor de rosa, incham sumptuosos na direcção oposta. Arregala uns límpidos olhos pretos e reprime estupidamente aquilo que sente.

Ele, um amolador de tesouras, facas, canivetes e navalhas trazia nos ossos os nós do oficio doloroso e na pele o negrume da roca. A carne nitidamente esquartejada de objectos tortos e afiados jamais iria alisar na perfeição. Consertava ainda chapéus de chuva com varetas partidas, a injusta causa de ter a vista esquerda completamente vazada e pálpebra descaída, contudo não se lhe esconde a verdade vomitada apenas pelo outro único olho. Os dedos eram os necessários para se entrelaçarem nos dela e o coração pingava-lhe aos pés um liquido que vinha não se sabe de onde.

Perto deles um pequeno macaco vestido de marinheiro comia amendoins fritos de mel e sal. Lambuzado beliscava-os cada vez que um pacote se esvaziava. Pedia mais, muito mais com a dentuça escancarada e a patorra estendida. E nem assim, aquela figura peluda os distraia daquele olhar, que quase no fim eles estavam a aprender.

Envergonhados ainda por um namoro recente, deixam-se ficar num silêncio cheio de desejos estimulados pelos sentidos. Tocam-se mentalmente e não tem coragem para o primeiro beijo que ainda não fora consumado. E se ele queria mais, muito mais senão um roçar de boca e língua. Afinal era humano e apesar de enrugado tinha tanto direito de cobiçá-la só para si, como todos os outro que não a alcançaram.

Impaciente e numa espontaneidade própria só dela pediu-lhe, sem conseguir controlar a voz para lá de trémula, que fechasse os olhos:
“- Pensa numa musica... Agora dança comigo!”

Cheios de sorrisos, levantaram-se e deslizaram da realidade coxa para lá de lá... ali no mesmo num sito onde passavam outras gentes outras vidas. Conhecedora que é das musicas de cabaré, o seu inconsciente foi buscar aquela que mais se enquadrava. A preferida a perfeita. A que se tornara bela naquele instante.

Que seria único e inesquecível... ainda não sabiam!!

No silencio do momento ouviu-se um pequeno cantarolar bem perto do ouvido, num sopro que causa arrepios. Conheceu aquela melodia soprada:
“- O Calhambeque, bi-bi, quero conservar o Calhambeque!!!

“- Fim!” Suspirou.

Eu queria-a... mas não a podia ter!!
Disse-me ele enquanto acabava de concertava o meu guarda-chuva favorito. Não percebi a história. Ou melhor, não percebi porque me contou a mim. Tive vontade de lhe fazer mil perguntas que me ardiam na garganta... “Se é verdadeira?! se a dançarina existe?! quem tinha cantarolado a musica?! ... de quem era o macaco?!

Mas... da mesma maneira que a começou a contar a história calou-se. “- Para si é de graça.”, disse ao mesmo tempo que esticou o guarda-chuva e se sentou na bicicleta sem cor e idade. Pegou numa gaita amarela e desceu rua abaixo...

10 comments:

rspiff said...

Sons que me fazem viajar, histórias que me fazem sorrir...

miak said...

Encantas-me agora da mesma forma que o fazia o amolador na rua dos meus avós há muitos anos. Num dia destes, ouvi o seu som, de novo na mesma rua. Agora quase percebo e vejo a bailarina cheia de vermelho e ossos a aparecer...

No chão existe ainda um pequeno monte de cascas de amendoim...

as velas ardem ate ao fim said...

Fui bo viajar no teu encanto.

bjinhos

miak said...
This comment has been removed by the author.
Bernardo Kolbl said...

Aquele é o mesmo PR, o mesmo. Eu sou primo dele. Só vem na sexta. Mas está mais neste blogue e aqui apanhas os links dos blogues dele.

http://www.suckandsmile.blogspot.com/

Boa noite e obrigado.

as velas ardem ate ao fim said...

Feliz dia da liberdade!

bjos

poca said...

ui.. tão bom esses beijos dados em pensamento.. tão bom esse palpitar de coração.. tão bom ler-te!

tenho uma prenda para ti lá no Off

Astor said...

maravilhosa *

PintoRibeiro said...

Bom domingo, com sol de preferência. Abraço.

as velas ardem ate ao fim said...

Bjo e bfs