Monday, December 04, 2006

Leonor

“- Acudam”...
Gritou em plenos pulmões a mulher da cesta equilibrada na cabeça.

Datava 1946. Ano em que Leonor foi encontrada mais tarde xingada por achada. Tinha apenas dois anos... sentada na doirada seara de trigo. Um trapo velho envolto no corpo e uma pequena laranja na mão. Dentadas perfuravam o fruto sumarento na esperança de matar a sede que já circundava a língua mais do que seca. Branca.

Veio o senhor policia. Veio a aldeia santa. Vieram os sábios e até o padre. Todos afluíram ao novo acontecimento na aldeia onde não se passava nada.

A criança assustada não sabia o que queira. Balbuciava palavras vazias que tocavam no tecto e desapareciam na algazarra da sua prisão. Fazia rir os bobos desdentados. Ninguém a conhecia mas palpitavam em volta de um casal que vivia no moinho da outra aldeia.

Apareceu o herói da história. Um belo rapaz por sinal, envolto no seu manto de pele de cordeiro, casado com uma linda rapariga de ventre deserto. Choravam os dois tal sorte e amaldiçoavam as outras encarnações. Acreditavam nessa coisas. Cheios de promessas peregrinas transformadas em esperanças semi-falsas. Desfaleciam em loucura todas as noites nos braços um do outro até o corpo doer. Mas todos os meses certos como um relógio... sangravam.

O herói da historia apaixonou-se por Leonor. A jovem esposa apaixonou-se por Leonor. Tinha de ser deles. Todos reclamam direitos. Era de todos e ninguém a queria. Foi preciso desembainhar o cajado numa lutar contra outros cajados, foices e outras coisas mais afiadas. Sentimentos, pressentimentos e argumentos malfadados. Escapuliu-se. Agarrou na pequena Leonor e escondeu-a no seu manto imortal, pensando erradamente que a protegia.

Decorrem cinquenta e dois anos, e Leonor apenas conseguiu o amor daqueles que a protegeram, mas que já morreram. Nunca amou ninguém sem ser aqueles. E nunca ninguém a amou sem serem eles.

Casou... é verdade. Nem ela própria sabe dizer a razão. As outras também casaram. Ela não queira ir virgem para a cova, pensava. Foi enganada (...)

Está sentada à minha frente, faz hoje cinquenta e dois anos, numa festa cheia de amigos bem pagos para sorrirem. Não me vem à memoria o nome daquele prato que fumega bem de frente do meu nariz. O cheiro é estranho. Pego no garfo com a mão esquerda e provo uma pequena batata que bailava num molho verde. Cuspo para o lado... todos tossem. Todos caem. Leonor no topo da mesa segura firmemente num copo de cerveja preta que tenta despejar num só gole. Olha para mim, a única que ainda não conseguiu sucumbir, e pergunta num abanar de cabeça:

- Porque choras?
- Por causa da tua história. És tu não és?!

Sorriu...

- Penso que sim. Penso que sou eu. Mas sabes já não tenho a certeza.
- Nunca é tarde pois não?
- Eu é que te devia fazer essa pergunta.

Se morri ou não... não me recordo. Apenas me lembro de um dor forte bem por cima do sobrolho...

Para J&L

6 comments:

david santos said...

OLÁ!
Vi-te na Isabel. Ocorreu-me qualidade.
" - Porque choras?
- POR CAUSA DA TUA HISTÓRIA. é ESTA, NÃO É?!"

Adorei. Parabéns.

Até sempre.

Astor said...

fui eu que te mostrei Cat Power?
espero que sim :))

tiveste sorte em ir ver.. eu não fui. gostava de ter ido...

ela é linda, a voz é linda... é... *suspiro*

:)

Kiau Liang said...

Hei...não tinh ainda tido tempo para te ler...gostei mesmo, mais não te posso dizer....

*

Luigi said...

Ao tempo que estava ausente da blogosfera Ao tempo que não vinha aqui ao teu mundo mágico, ora intenso ora frágil. Os teus contos são inesquecíveis.
Porque choras?

Nuno West said...

Adoro que me encantem. Não vai sendo fácil. Que me embalem e segurem em palavras.

Sublime, a tua estória...

poca said...

saudades deste teu abismo encantado...
voltei...
beijinhos