Despertou com uma dor alucinante nos braços e nas pernas. Nos lençóis brancos postos de lavado na noite anterior, rastos de sangue por todo o lado.
Não se conseguia mexer.
De esguelha olhou para um dos pulsos e viu atarraxado na carne um pequeno parafuso de onde suspendia uma corda de nylon muito fina, quase transparente. Revirou os olhos para o lado oposto e a mesma imagem foi revelada. Tentou levantar a cabeça e seguir com o olhar de onde vinham as cordas....
Passavam esticadas para lá do tecto do quarto.
Prostrou-se naquela posição. Ao fim de horas sem conta, sentiu um esticar de corda num tornozelo. Depois no outro, e a seguir nos pulsos. Viu-se a sair do quarto sem coordenação de movimentos. Não sabia para onde ia, ou para onde a levavam... a vontade própria fora-lhe roubada e consumida por um não querer. Entregou-se por completo aquele arrastar de existência, guiada por quatro cordas suspensas de um tecto. E apenas uma vez quando num forte suspiro tombou a cabeça para trás e observou nas extremidades qualquer coisa que deixava passar a luz...
Não conseguiu distinguir de forma clara e nítida o que era.
Com o tempo as feridas na carne causadas pelos parafusos foram fechando. E o organismo em vez de expelir aqueles corpos estranhos, recebeu-os como se de um apêndice necessário se tratasse. Tornaram-se parte integrante do seu próprio corpo...
Causavam dor transformada em desconfiança cega, a qualquer roçar...
Certo dia o vento trouxe consigo nos bolsos o cheiro a mar e atirou-lhe à cara pontinhos de sal. Soprou-lhe violentamente palavras ao ouvido e trespassou-a com um fino objecto cortantes desinfectado com memórias. Lucidamente suspirou.
Em surdina disse entre os lábios que gostava de lá voltar...
Sem nunca ceder a um único afrouxar de corda, aquilo que na extremidade fazia de si uma autêntica boneca de madeira oca, guiou-a benevolentemente em movimentos rápidos por um caminho que tão bem conhecia... mas dentro de si ecoava o grito de que seria apenas um momento...
depois regressaria aquela subsistência.
Naquele sitio... o que era antes o seu sitio e o que estava destinado a ser seu para sempre, sentou-se inerte. Ressentiu as cordas de nylon a afrouxarem os esticões. Sentiu beijos de saudade nos salpicos salgados e observou as línguas do oceano lamberem as rochas, por debaixo dos seus pés. Em laivos de memoria foi-se recordando... mas não conseguia chorar...
aliás nunca conseguiu...
Sentada naquele sítio. Atestou-se. Num movimento bruto vindo de dentro de si atirou-se para o precipício... aquilo que na extremidade fazia de si uma autêntica boneca de madeira oca, tentou em vão esticar as cordas para a suspender naquele mergulho. Mas as cordas não aguentaram o peso morto que caia a pique. Os parafusos saltaram arrancados pela violência do esticão, lacerando as feridas fechadas...
...despenhou-se no precipício... ao cair nas águas salgadas todo o seu corpo lhe ardeu... sentia-se a curar...
Subscribe to:
Post Comments (Atom)
10 comments:
pistas?
Tão triste...tão bonito...como sempre...
E eu não vou a lado nenhum...mas vais ter de aguardar para saber quando vou deixar as sombras...
Ah, descobri o sitio onde foste buscar a tua nova cara...não sabia o que era...mas agora já sei...mas não conto a ninguém...
logo com calma, leio... e gostava de te enviar uma coisa, mas n tens endereço...
bjs
:))
Sem palavras!!
Não se cura uma dor tão grande quanto a que leva ao suicído, ou pelo menos tentativa.
Esquece-se.
Esquece-se, não se cura.
Arrebatador.
Bjs
Então eu chateio por aqui...
Fecho os olhos e canto sem fazer barulho...
"I once fell in love with you
Just because the sky turned from gray
Into blue..."
- mas não se escreve "grey"?
- acho que também pode ser gray...
- a sério?
- sim, acho que os americanos escrevem gray
- mas elas às vezes cantam em francês
- vai-te deitar...é tarde...
Porque eu conheço os segredos da tua liguagem....Porque todos morremos por dentro de vez em quando.....
hei....obrigada...faz sempre sentido
O impacto que as estórias têm em cada um de nós é sempre diferente. Vi uma marioneta, uma boneca desarticulada, triste, triste também por perder a única coisa que tinha...alguém ou algo que a comandasse. Não sei se é quando perdemos as coisas que lhe damos verdadeiramente valor, frase muito conhecida, se é porque só conhecemos aquela realidade que nos apegamos a ela, mesmo que seja uma realidade disfuncional. Tendemos a repetir padrões que tentamos esquecer.
Bolas..fiquei com abelhas no estomago..puxadote !mas bom..mt bom.
Post a Comment