Friday, March 24, 2006

Eternamente assim...



Aquilo é que era tempo... um tempo que passou tão rápido que agora os meus dias são passados a olhar lá para fora sentada com um corpo velho e gasto que já não me obedece, numa cadeira junto a uma janela onde a paisagem apenas muda com as estações do ano. Os carros que passam e as pessoas que acenam são sempre as mesmas, a vida lá fora não pára e minha cá dentro não avança. A que tive acabou numa rotina que se reparte entre refeições pontuais e medicação regrada, num caminho separado em dois passos entre a minha cadeira articulada e a minha cama.

Olho a cara das três gerações que eu própria gerei com o amor de uma vida inteira, olham-me com compaixão e sorriem-me como se estivesse louca, só porque deixei de falar. Por vezes desejo que não apareçam mas depois anseio constantemente pelas suas visitas. É a força do sangue. Ou então já é o cansaço e o “destreinamento” de ter que pensar no que é correcto.

Já me conformei que o corpo é mesmo assim... não consegue acompanhar o espírito. E o espírito por sua vez vai-se descolando.
Olho os meu pés deformados. Pés que outrora brilhavam numas sandálias de veludo azul que o meu marido me comprou numa avenida francesa, vestia uma a saia xadrez a condizer e colocava um grande chapéu nos meus enormes caracóis, que hoje estão reduzidos a linhas brancas... e ambos passeávamos de braço dado. Mas apesar de ver o meu corpo a deformar-se e encolher, observo o meu rosto no reflexo do espelho e continuo a ver-me como sempre fui... elevo as mãos com os dedos disformes e afasto um lindo caracol que sempre insistiu em cair-me sobre os olhos... sorriu e uma fileira de dentes confirmam que serei, apesar de os outros não conseguirem enxergar, eternamente assim...

A minha saúde está presa a lindas recordações que trago ao longo destes noventa e oito anos. Aqueles que não aguentaram tanto tempo visitam-me à noite... e juntos viajamos para trás e vivemos as emoções dos dias mais felizes da minha vida.

Como é habitual no verão sento-me na grande cadeira de baloiço que está colocada no alpendre da grande casa com vista para a barragem. Uma aragem vinda de sul revolta as arvore que circundam toda a herdade e na relva fresca as três crianças brincam tranquilas com os cães acabados de nascer. Ao longe o sol tardio torna toda aquela paisagem em cores inexplicáveis... as minhas cores e os meus cheiros de menina.
Estico o braço e de uma outra cadeira de baloiço muito juntinha aquela onde eu estou sentada, uma mão grande e familiar entrelaça-se com a minha...

6 comments:

Kiau Liang said...

....a vida não se perde no tempo, no entanto que bela forma de anoitecer teve esta vida.....eu acho que já te conheço de tantas outras vidas e lembro-me tão bem do chá do teu alpendre.....

rspiff said...

Que bonitas estas palavras...que sensação de calma...que vida tão bem vivida...

Astor said...

:') com a banda sonora perfeita, fazia-se uma bela cena de um qualquer filme bonito :)

inBluesY said...

mil desc's nem o outro nem este, mas este fsemana reponho leituras e tempos perdidos :(

beijinhos
bfsemana

inBluesY said...

por um lado a trsiteza da espera, por outro uma riqueza de vida... muito bonito como sempre, este em particualar, o valorizar da vida, de uma vida vivida :)

b'jinhos

Madame Pirulitos said...

Projectei-me no futuro. Fiquei triste. Vá-se lá saber porquê.
Estive a ouvir a tua musica. Muito, muito bonita.