Friday, February 10, 2006

Num jardim depois do sol...

Depois do cansaço ter tomado por completo o domínio do meu corpo, sentei-me num pequeno banco de madeira, mesmo de frente para aquele grandioso monumento. Olhei à minha volta e só então reparei o quanto já era tarde. Mas fiquei prostrada na mesma posição, deixando o vento arrancar-me aos poucos da memoria do que se que tinha passado.

Observei pacificamente o monumento majestoso. Reparei nos pequenos pormenores das estátuas que pendiam dos telhados e exclamei para mim o quanto pareciam reais. Na minha cabeça já oscilavam as ideias mais absurdas, numa tentativa de engendrar uma invasão aquilo que não era meu. Queria ver de perto, e poder apalpar aquilo que para mim estavam perfeitamente bem esculpido.

Vinda de nenhures surgiu uma mulher que se sentou ao meu lado. Não a senti. Estranhou eu estar ali àquelas horas, não respondi. Estava cansada de mais para afastar os lábios e soltar qualquer som... Percebeu.
Disse que queira contar-me uma história. Acenei com a cabeça, e mexi-me apenas para me colocar numa posição mais confortável.

Começou então:

Aconteceu assim que o sol se escondeu, num monumento rodeado por um jardim exuberante preso em quatro muros que protegem arvores exóticas e grutas labirínticas, relógios de sol, estátuas antigas e animais de pedra. Um jardim que acorda com espírito próprio e concretiza sonhos mágicos em mais uma noite cheia de vidas não respirada.

Sentada no seu púlpito, que adorna um dos telhados do magnifico monumento ogival há mais de mil anos, permanece imóvel e resistente.
Atrás, na nuca, sentiu um estilhaçar que lhe percorreu o resto do corpo desumano. Estava a partir-se. Saia de dentro de uma casca de pedra, sem fazer um único barulho e aos pouco ia-se articulando novamente . Ao seu lado, em púlpitos vizinhos outros se partem em formatos diferente e saltam em pulos descomunais para a cor roubada pela escuridão.

Saltou para a calçada do pátio. E numa paisagem que observava em anos que já perdeu a conta, inspirada numa história que já não se recorda, cumprimenta a sua efémera amiga liberdade. O vento feliz por a ver, revolta-lhe os enormes cabelos lembrando-a das horas que possui até ao próximo sol.

Por todo o jardim, deambula uma mistura de entidades muito antigas que povoam apenas os sonhos humanos. Os sonhos daqueles pelos quais estavam proibidos serem vistos mesmo em aparições. Existia uma lei muita velha. Redigida há milhares de anos com o sofrimento de todas as entidades, contendo uma penalização fatal. Não é necessário ser relembrada, todos a sabem de cor, e não falam dela. Repartem apenas o seu tempo em alegres conversas desconhecidas, festas, músicas e danças.

Com a túnica a esvoaçar fantasmagoricamente, correu pelo caminho dos Deuses sem desviar o olhar. Conhece as suas histórias e não quer entrar em nenhuma delas. Ouviu murmúrios sobre alguém que já não existe. Alguém que ousou apaixonar-se pela beleza e uma deusa.

Alegre continua... elogia as folhas que apanham os pingo de humidade, e beija as flores que não acordaram. Apesar de ir na direcção certa, naquela noite não lhe apetecia festas nem conversas. Caminhou alegremente até ao limite do muro e espreitou para o mundo humano, riu. Foram muitas a vezes que foi tentada a atirar-se, só para ver como era... Sentou-se no chão e distraiu-se consigo.

Ouviu uma respiração. Com os olhos procurou em várias direcções o seu possuidor... pensou tratar-se de uma habitual brincadeira, e voltou aos seus pensamentos. Novamente a respiração e pressentiu medo... procurou novamente. Espreitou para debaixo de um banco de pedra ornamentado com conchas marinhas... e não queria acreditar no que via... um humano.

Um grito ensurdecedor percorreu todo o jardim... e quanto mais ela se mexia numa tentativa de o calar mais ele gritava de pânico. Se os outros o ouvissem estariam ambos condenados. Sabia a velha lei de cor. Os outros ouviram... e eles foram condenados...

Do humano nunca mais ouviu falar. Ela fora atirada de um dos quatros muros que rodeavam o monumento... condenada a deambular pelo mundo exterior durante a noite, podendo apenas regressar antes do seu corpo não humano começar a petrificar.

... Silêncio.

Respirei fundo... Imaginei toda aquela história passada naquele mesmo monumento que se encontrava a minha frente. Virei-me para elogiar... e ninguém, não a senti...

5 comments:

rspiff said...

Sinto uma empatia tão grande com estas palavras que escreves que às vezes acho que sou eu que as escrevo e leio ao mesmo tempo, como se durante a noite me levantasse sem acordar e escrevesse com outro nome...

Um dia gostava de escrever uma história assim e oferecê-la, mas tu escondes-te...tens medo das minhas sombras?

Kiau Liang said...

....não encontras-te pedrinhas, pequeninas em cima de banco?
Podiam ser os restos de uma lágrima.....

miak said...
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miak said...

Às vezes teimo na originalidade do elogio...

Hoje não o farei.

Adorei a tua estória...

Muito!!

mfc said...

Às vezes, o melhor elogio e dizer: «estive aqui». Porque os demais é sujar.