Tuesday, March 13, 2007

A senhora do calaboiço

Acreditava eu que os príncipes encantados apenas existiam na cabeça de donzelas tontas com voz de cana rachada e dedos picados de agulhas tortas de tanto tempo fiar. E sempre me fez sorrir a ideia do trovador a berrar para uma janela enfeitada, dedilhando tristemente uma cítara e agonizando trovas de amor eterno, provocando arrepios aos seres mais tristes que por ali passassem.

Acreditava sem sequer pestanejar que um dia nas batalhas entre as terras e mundos desconhecidos que tentei conquistar até aos dias de hoje, esbarraria com aquele que deveras arrebataria comigo e com um só olhar roubava-me alma. Teria que lutar até ficar sem forças pelo meu “eu” e se saísse vencida dar-me-ia a mim como prémio. Tentei acreditar nisso, e foi esse acreditar que me fez andar despreocupada a espetar beijos nos maiores sapos sapudos que se transformaram, não em príncipes mas sim em fieis amigos encantados que cavalgaram comigo em demandas fantásticas com fins espectaculares.

Bem.. tudo aconteceu num belo dia de Páscoa para lá do século passado. Limpávamos armas e descansávamos o corpo cansado de tanto percorrer... viver. Repousávamos em praias privadas sobe a areia que já começava a ficar morna, solta de limpa que estava. Desencravou-se unhas, retirou-se espinhos e curou-se chagas de tanta dança e contradança. Treinam-se novas tácticas e habitua-mos as mãos a outras mãos.

Optei por passear na carroça puxada por cinquenta cavalos voadores mas naquela velocidade em que se voa deliciosamente a meio gás, fechando os olhos e perdendo o controlo de segundo a segundo.
Parei junto à falseia e deixei-me sentir esvoaçante numa conversa repleta de piratas zarolhos à procura de mulheres de rabos grandes. "- Boas parideiras"... diziam em risos estridentes de dentes podres. (...)

O vento apertou como uma maldição e arrancou-me, numa força de mil homens, abruptamente da carroça. Os piratas não tiveram tempo de agarrar uma das minhas mãos e em trambolhões confundidos com aqueles voos que jamais queremos recordar, cai pela falésia abaixo mesmo em cheio dentro de um calaboiço perdendo os sentidos.

Acordei. Estremunhei o sitio e assustei-me quando olhei em volta aterrorizada com a ideia de ficar ali para sempre. Presa. Lembro-me do pânico agarrar-me o coração e apertá-lo. Lembro-me do desespero que esgravatou com os meus próprios dedos a terra ainda mole das ultimas chuvas. Tentei não chorar. Tentei não gritar!!

- És uma princesa?!
ouvi coaxar... do escuro.

Num palavrão guinchei que não me faltava mais nada se não um sapo repugnante a pedir-me para ser beijado... senti-o aproximar-se e respondi-lhe entre dentes que NÃO.
Foi-se aproximando e ainda não lhe tinha posto os olhos em cima já as minhas entranhas se reviravam e não estava a conseguir compreender o porquê de perder o controlo por mais de um segundo numa curiosidade quase predadora de ver. Encaramo-nos... ou melhor eu encarei-o. E não percebi o sentido que o meu coração seguia em centenas de batidas...

- Podes experimentar, por favor?!
Voltou a coaxar...

Estiquei os lábios...

Juro que não sei o que se passou. Não sei se o cheguei a beijar... e antes que uma luz muito forte me magoasse a vista, ainda vi ao longe do calaboiço, que até à altura era apenas um buraco pequeno, um vulto a correr...

Ainda gritei...
- Não reza a lenda que o sapo fica com quem o beijou...
Mas não se virou para trás, sequer.

Olhei para cima e estavam os piratas a tentar atirar cordas para me tirarem dali.
Quando por fim consegui agarrar um braço tatuado apercebi-me que já não era a mesma. Estava diferente e quando olhei para baixo senti-me a cair em direcção ao meu destino que tinha acabado de fugir... Inventei eu uma lenda e recolhi-me. Sabia que tinha ficado presa, na longa espera de um beijo sequioso.

Não tenho ideia do dia do calendário em que cheguei à boca do calaboiço e sem vida me atirei lá para baixo. Sem juventude e sem vontade, apenas com melodias cantadas em voz de cana rachada.

Com o passar dos anos comecei a ouvir um tilintar constante... eram moedas.

Em volta do "meu calaboiço" circundava a lenda dos amores eternos. E as verdadeiras princesas começaram a sair das torres e vinham até ao meu limite atirar moedas e fazer promessas para eu lhes devolver os amados... gritavam o meu nome e atiravam a moeda... como se eu fosse uma Santa que vivia ali há séculos, anos, meses, dias, horas, minutos e segundos à espera...

5 comments:

miak said...

A capacidade de fazer chegar magia ao meu mundo. A possibilidade de me rever em pequeninas letras que me enchem de sonhos...

Tanto que tenho para dizer...

miak said...

Não precisas, mas...

(isto de se entender sem "ouvir" por vezes cria um friozinho na barriga)

Titá said...

Maravilhoso!

Não consigo dizer mais nada: Simplesmente maravilhoso

miak said...

Bom fim-de-semana.

Bj.

Una Amiga de Mi Amiga said...

uau!
quem pode ficar indiferente a esta historia, a este cantar?
mt bom mesmo.