Thursday, March 30, 2006

Para nunca esquecer o "ontem"...



Noite, passeio, meias, ténis rotos. Queda, dor, sorrisos, gargalhadas, suor que arrefece a pele que escalda, brisa fresca, esplanada e saudades das noite de Verão. Café e àgua com muito gelo e casca de limão. Pessoas que passam e pessoas que já passaram. Boas noites em atraso e o até amanhã desejado. Cansaço, voltas na cama e o acender de luz. Copo de leite e pinhal. Musica, sonolência e sonho...

Tuesday, March 28, 2006

Sempre com um sorriso nos lábios...

- Onde dói?
- Aqui...
- Ai onde?
- Aqui bem debaixo da camisola, da pele e da carne...
- Deixa ver...
- Não... não podes... não se vê...
- Porque te dói?
- Desde ontem que a minha cabeça não para de latejar e sinto que o coração me salta pela boca.
- Mas quem te fez mal...
- Não foi quem... foi o quê!!!

Desde ontem que ando assim... voltei a não dormir. Prometi a mim mesma que não voltaria lá, mas foi impossível. O meu coração alia-se de tal maneira a minha imaginação que a mente não obedece aos estímulos do que é consciente. E sei que nos dias mais rotineiros não posso lá ir, porque não tenho forças suficientes para voltar ou simplesmente não quero.

Olhei, e como sempre lá estavam ambos há minha espera sentados no limite da rocha com os pés pendurados para lá, bem ao lado do ponto geodésico... o sol ainda estava bem alto, mas reparei que se preparavam para passar noite. Por vezes penso que para eles é tudo tão mais fácil, conseguem-se desligar em escassos segundo enquanto eu vou largando bocados de mim e andando só por metade... e mesmo que depois que os queira juntar novamente tornam-se incompatíveis...

Desta vez fui a pé, para demorar mais tempo e para o caso de me arrepender voltar para trás ainda mais devagar. Vou assustada porque sempre que me chamam sem aviso prévio é por alguma coisa não estar realmente bem. E desta vez não foi diferente, num raciocínio rápido senti a má noticia que lhes ardia nos lábios.

Alguém destruira por completo o mundo de Henric... fora assaltado no sossego da sua auto caravana. Alguém espatifou por completo tudo o que ele tinha, destruindo em pontapés tudo o que era quebrável...

Mas o que é realmente fantástico, é a forma como aquele homem aceita este facto sem julgar e continua a sorrir enquanto recolhe cada caco com as pontas dos dedos...

E continuo com o coração pesado... porque não quero sentir pena dele ... mas neste momento não consigo ter outro tipo de sentimento qualquer...

Monday, March 27, 2006

Não posso dizer... não posso!!!

- Pssssiiiiuuuuuu, hó vizinha, vizinha...
- Sim, diga rápido que tenho o feijão ao lume!!
- Já soube?
- Soube do quê?
Apontando com dedo indicador para a terceira casa do bairro e respondeu:
- O Teodoro tem nova mulher. (sussurrou em tom de escárnio).
A outra colocou uma cara de horror e esquecendo-se completamente da panela que apitava no fogão...
- mas o lado da defunta ainda nem arrefeceu...
- É para ver vizinha, como são os homens. Não podem estar sozinhos.
- E é aqui do bairro?
- Não se sabe, nunca ninguém lhe pôs vista em cima, apenas já à noitinha se dá por ela... aqueles que lá por perto passam ouvem-lhe os passos.
- Só à noite? Que pouca vergonha...
- Dizem ainda que há-se ser uma bela mulher... pelos vultos que trespassam as cortinas coçadas.

Mais duas vizinhas se juntam ao mal dizer, atirando exagerados comentários sobre a mulher misteriosa. E outras duas formaram seis. E das seis expandiu-se como um rastilho que rebenta ao fundo com estrondo. Deste estrondo já todos os desocupados ocupavam-se agora em descobrir quem seria tão misteriosa companhia do jovem viúvo.

- Diz lá quem... que nos matas de curiosidade...
- Não posso dizer... não posso.

Na sociedade recreativa já os mais velhos faziam apostas nas cartas com o nome e outros devaneio menos próprios. Os mais novos mandavam piropos aprendidos em casa e as mulheres de avental juntavam-se à porta da mercearia já com inveja da nova que viria.
O padre ao domingo pregava sermões de bons costumes e dos anos de luto que se deve carregar. Três insistia o padre, com os três dedos bem esticados para cima e os olhos posto no Teodoro. O padre encarava-o, todos o encaravam.
Na confissão voltava o padre a insistir:

- Diz-me Teodoro quem é essa mulher que te visita à noite?
- Não posso dizer senhor padre... não posso.

E foram estas as especulações que circundaram em todo o bairro, durante dias, semanas e meses. Sem ninguém esquecer...

Uma noite a sirene do carro de bombeiros tocou e voltou a tocar, significando fogo. Havia um incêndio no bairro. Na agitação todos saíram de casa para IR VER. Uns em trajes menores outros ainda semi-nus, em magote desceram a rua principal do bairro, parando junto à casa que ardia. A terceira casa do bairro.

O fogo foi extinto, devorando por completo a casa e todo o seu interior... momentos depois o bombeiro que entrou e saiu com José Teodoro em braços...

E uma grande exclamação percorreu todos os presente. Alguns gritaram outros ficaram estáticos, algumas mulheres desmaiaram e crianças choraram...

José Teodoro vinha já sem vida. Trazia ja meia ardida uma peruca loira e vestido as roupas da defunta...

Friday, March 24, 2006

Eternamente assim...



Aquilo é que era tempo... um tempo que passou tão rápido que agora os meus dias são passados a olhar lá para fora sentada com um corpo velho e gasto que já não me obedece, numa cadeira junto a uma janela onde a paisagem apenas muda com as estações do ano. Os carros que passam e as pessoas que acenam são sempre as mesmas, a vida lá fora não pára e minha cá dentro não avança. A que tive acabou numa rotina que se reparte entre refeições pontuais e medicação regrada, num caminho separado em dois passos entre a minha cadeira articulada e a minha cama.

Olho a cara das três gerações que eu própria gerei com o amor de uma vida inteira, olham-me com compaixão e sorriem-me como se estivesse louca, só porque deixei de falar. Por vezes desejo que não apareçam mas depois anseio constantemente pelas suas visitas. É a força do sangue. Ou então já é o cansaço e o “destreinamento” de ter que pensar no que é correcto.

Já me conformei que o corpo é mesmo assim... não consegue acompanhar o espírito. E o espírito por sua vez vai-se descolando.
Olho os meu pés deformados. Pés que outrora brilhavam numas sandálias de veludo azul que o meu marido me comprou numa avenida francesa, vestia uma a saia xadrez a condizer e colocava um grande chapéu nos meus enormes caracóis, que hoje estão reduzidos a linhas brancas... e ambos passeávamos de braço dado. Mas apesar de ver o meu corpo a deformar-se e encolher, observo o meu rosto no reflexo do espelho e continuo a ver-me como sempre fui... elevo as mãos com os dedos disformes e afasto um lindo caracol que sempre insistiu em cair-me sobre os olhos... sorriu e uma fileira de dentes confirmam que serei, apesar de os outros não conseguirem enxergar, eternamente assim...

A minha saúde está presa a lindas recordações que trago ao longo destes noventa e oito anos. Aqueles que não aguentaram tanto tempo visitam-me à noite... e juntos viajamos para trás e vivemos as emoções dos dias mais felizes da minha vida.

Como é habitual no verão sento-me na grande cadeira de baloiço que está colocada no alpendre da grande casa com vista para a barragem. Uma aragem vinda de sul revolta as arvore que circundam toda a herdade e na relva fresca as três crianças brincam tranquilas com os cães acabados de nascer. Ao longe o sol tardio torna toda aquela paisagem em cores inexplicáveis... as minhas cores e os meus cheiros de menina.
Estico o braço e de uma outra cadeira de baloiço muito juntinha aquela onde eu estou sentada, uma mão grande e familiar entrelaça-se com a minha...

Tuesday, March 21, 2006

Estátuas quentes!!

-Gostas do meu vestido?
- Gosto, essa cor condiz com os teus olhos. Cor de rosa. É feito de quê?
- De lã, caxemira e renda. Fui eu quem o fez... cozi com cabelos de várias cores. É um feitiço que me ensinaram.
- Feitiço? Para que precisas de um feitiço?
- A muitos anos ainda em pequena, uma velha muito velha leu-me nos olhos, que um dia encontraria alguém que iria olhar para mim para lá de tamanha feiura. E que seria num lindo baile...
- E onde é esse baile?! o mensageiro não apregoou baile algum...
Mas continuou a cantarolar... como se a irmã não existisse sequer...
- Vou colocar o cabelo no alto nuca, disfarçará decerto a esta minha feiura, colocarei pólen de flor "marron" na pele para parecer mais rosada e nos lábios banha com corante vermelho. Apertarei o vestido ate encolher gorduras.
- Sim (proferiu pacientemente) realmente, realça-te as curvas. Estás linda...

Aprontou-se apressadamente... a irmã pensou tratar-se de mais um devaneio. Pois desde pequena que era mole de inteligência. Alias não seria a primeira vez que ela se iludia em bailes e festivais para os quais só ela era convidada. Dizia o senhor doutor que também era veterinário, num dos últimos devaneio do qual não foi fácil trazê-la de volta, que se tratava de dores de solteira... que se curava com sangramento.

Vivia num não conseguir aprender... vivia dentro de um mundo só seu que tinha um enorme jardim... e se transformava naquilo que desejava. Desta vez passeou por dentro de arcos abobados, avenidas herbáceas e parou de frente para um corredor de calçada ladeada de sebes muito bem aparadas. Algumas estavam milimetricamente alinhadas de quatro em quatro e esculpidas em animais fantásticos.

Ao fundo desse mesmo corredor uma porta com janela... correu imediatamente antes que fosse proibido e em segundos já estava de pé junto à janela. Na humidade interior de respirações, dos vidros não conseguiu ver nada... limpou com a ponta do vestido mas era de dentro... voltou a espreitar, e sem querer com um simples toque de nariz abriu-se...

Estava a decorrer um festival de musica e cores que rodopiavam num salão luxuosamente ornamentado. Cheirava a beleza interior, verdade e sabedoria. Estranhamente estava cheio de pessoas. Pessoas bem vestidas e a rigor. Vestidas à época e a muitas outras épocas anteriores. Mas o mais interessante é que estavam todas paradas, como se de estátuas se tratassem. Estáticas em posições de segundo antes... como se algo ou alguém tivesse entrado de repente e as tivesse paralisado. Tinha pensamentos fracos para “descorrer” o que se passava. Para ela era um baile onde animadamente se confraternizava independente do indumentária... passou por entre todas, tocou-lhe e pareceu sentir. Dançou com este e aquele numa dança onde só ela se movimentava.

Ao fundo um rapaz parado em posição de convite de dança.
Encaixou as suas largas ancas nos braços estáticos do rapaz e rodopiou... apaixonou-se... pelo rapaz que não se mexia...

Por fim lutou com o cansaço... caiu na exaustão. Aconchegou-se nos braços do rapaz que não se mexia e adormeceu... estremunhou por várias vezes e pareceu-lhe ver as pessoas estátuas do baile a movimentarem-se e a rir. O rapaz sempre ao seu lado agora com os braços mornos acariciava-lhe os seus cabelos cor de laranja. Numa sonolência voltava sempre a cair no mesmo sono profundo... e repetidamente via as estátuas em posições diferentes cada vez que abria os olhos...

Friday, March 17, 2006

O dia que voltou ao inicio!


Acomodei-me de tal maneiras as minhas sensações que andei entregue apenas a um deambular... Estive semi-transparente e como se de um camaleão tivesse genes, confundi-me nas cores e nas formas de tal maneira que me esqueçi de voltar à configuração inicial.

Confiada a mim própria, sentei-me numa esplanada quase vazia. Sento-me na mesa de sempre para me dar a entender de uma vez por todas que tenho raízes e costumes... os outros que por mim passam entregues as suas vidas circulam em câmara rápida como se o mundo fosse acabar... lentamente recosto-me na cadeira e deixo todo o meu eu absorver os sol morno...

Num palco improvisado do bar de madeira uma rapaz acaba de tocar uma melodia qualquer... tocava melancolicamente uma viola. Na sua expressão o sentimento. Em espaço aberto novas notas misturam-se com o murmurinho do dia a dia, fazendo no entanto uma melodia deliciosa.

Em cada corda que toca o som tranquilizador das notas penetravam pelos os meus ouvidos em busca da minha substancia, como se de um elixir se tratasse. Olhei o céu e deixei que devagarinho o dia voltasse ao inicio...

Tuesday, March 14, 2006

14.03.06


Por entre os postigos da janela do quarto, a ainda escassa claridade de um novo dia tirou-me o resto das horas que tinha para dormir. Em voltas e mais voltas por entre os lençóis um braço fantástico que me destapa e uma voz chamativa vinda na brisa, empurram-me para mais um amanhecer. Não era a primeira vez, nem seria a ultima que isto me acontecia conscientemente...levantar-me antes do sol.

Sentei-me em cima da mota das quatro rodas... desta vez ia sem destino. Levei apenas comigo o meu silêncio e deixei-me resvalar numa enorme vontade de apenas querer estar e andar por ai. Na loucura do vento que aumentava com a velocidade, procurei a saída de dentro de um jogo perigosamente rotineiro e aproveitei os seus uivos por entre os cabelos, para trautear pequenas melodias.

Com uma sede de querer enxergar tudo, rodopio a cabeça em carrossel de marcha lenta e calmamente vou alimentado a retina com cada imagem que contemplo, fechando os olhos ao som de um clic inventado, captada por uma objectiva que não existe.

O nevoeiro, que adivinha mais um dia de calor, vai-se dissipando em contagem crescente, deixando vislumbrar à medida que o trespasso as magnificas cores roubadas aos mistérios da noite. E com uma imaginação que salto ao mínimo impulso, invento como é a essência do quê ou quem tem intervenção no desenvolvimento em um simples acto... tão sublime.

Sítios rotineiros que simplesmente se tornam habituais a minha passagem, convertidos em locais encantados e arrumados na memoria de um dia, que a seguir se disfarça de igual a todos os outros, deixando-me num saboroso silêncio...

O que senti dentro de mim jamais conseguirei descrever ou até compreender para o transformar em palavras... apenas no meio de tantos sentidos encontrei uma enorme vontade de o partilhar...
Aqui...

(5h00-7h)

Thursday, March 09, 2006

A senhora do restaurante...

Sento-me sempre confortavelmente na mesma mesa do canto para almoçar. Desde o dia dos sapatos de salto alto que o Sr. Josué ficou mais simpático e nunca poupa uma piada sobre assunto. Mas para mim bem melhor, porque assim tenho sempre a mesma mesa reservada...

Geralmente engulo o almoço demoradamente, em amena conversa com duas boas companhias. Mas hoje não foi nada disso que me aconteceu... fui almoçar sozinha... e como é normal para quem se senta sozinho numa mesa de quatro lugares, tem que partilhar a refeição com quem não conhece. O que maior parte das vezes é proveitoso no sentido das coisas que se aprende em conversas ocasionais com pessoas diferentes. E sinceramente até aprecio bastante.

Via-a chegar... aliás todos os que estavam no restaurante viram-na chegar... Vestia um enorme casaco de pelo de raposa (penso eu). A cor da pele era difícil de adivinhar devido às várias camadas de maquilhagem. O cabelo amarelado com umas madeixas roxas completamente armado e enfeitado com brincos e colares ofuscantes. Sentou-se ao meu lado. Olhou para o meu prato e encolheu a cara repugnada... (até ali não fazia ideia que uma simples sopa era assim tão repugnante.)

Pediu-o o que tinha que pedir, e como já estava a demorar muito pôs conversa comigo. Encarei-a e imaginei-a nua com cara de raposa. Não reprimi um sorriso. Começou imediatamente por me contar de onde era, descrevendo ao pormenor o todos os seus luxuosos bens materiais. Revelando ainda que o marido era dono de uma empresa qualquer.
Retirou da mala um cartão e esticou-me a mão dizendo que se precisasse de alguma coisa era só telefonar para ele. (Pensei que no mínimo lhe telefonaria para dar os sentimentos.)

Numa alegria eufórica, e com a voz num tom bem alto não fosse alguém não conseguir ouvir, falou-me das festas, das compras que fez e das que iria fazer naquele dia. Falou das viagens ao Brasil, e àquela cidade que não se lembrava do nome, onde foi ver uma exposição de quadros horríveis com bois. (Pobre Picasso, que barbaridade).

Falou-me ainda dos concerto que costumava frequentar. E foi então que o restaurante desmoronou-se em cima de mim quando ela começou a recitar Tony Carreira. “– A menina não conhece!?” Exclamou espantada... (quase pensei que era sacrilégio andar sem um CD do dito no carro).

Voltou a olhar para a minha cara de incrédula. Depois calou-se. Perguntou-me de onde era.... quando eu ia abrir a boca para lhe dizer que não era de lado nenhum porque não tinha intenções de iniciar uma nova conversa ... voltou a olhar... olhei-a bem no fundo dos olhos, estava vazia... e senti uma enorme tristeza. Mas não sei se por ela se por mim...

H. e C. voltem depressa... estão perdoados...
Kiau! ainda bem que não estavas comigo. Se não tinha sido uma macacada pegada de tanto rir...

Tuesday, March 07, 2006

"nonna..."

Despertou com uma dor alucinante nos braços e nas pernas. Nos lençóis brancos postos de lavado na noite anterior, rastos de sangue por todo o lado.

Não se conseguia mexer.

De esguelha olhou para um dos pulsos e viu atarraxado na carne um pequeno parafuso de onde suspendia uma corda de nylon muito fina, quase transparente. Revirou os olhos para o lado oposto e a mesma imagem foi revelada. Tentou levantar a cabeça e seguir com o olhar de onde vinham as cordas....

Passavam esticadas para lá do tecto do quarto.

Prostrou-se naquela posição. Ao fim de horas sem conta, sentiu um esticar de corda num tornozelo. Depois no outro, e a seguir nos pulsos. Viu-se a sair do quarto sem coordenação de movimentos. Não sabia para onde ia, ou para onde a levavam... a vontade própria fora-lhe roubada e consumida por um não querer. Entregou-se por completo aquele arrastar de existência, guiada por quatro cordas suspensas de um tecto. E apenas uma vez quando num forte suspiro tombou a cabeça para trás e observou nas extremidades qualquer coisa que deixava passar a luz...

Não conseguiu distinguir de forma clara e nítida o que era.

Com o tempo as feridas na carne causadas pelos parafusos foram fechando. E o organismo em vez de expelir aqueles corpos estranhos, recebeu-os como se de um apêndice necessário se tratasse. Tornaram-se parte integrante do seu próprio corpo...

Causavam dor transformada em desconfiança cega, a qualquer roçar...

Certo dia o vento trouxe consigo nos bolsos o cheiro a mar e atirou-lhe à cara pontinhos de sal. Soprou-lhe violentamente palavras ao ouvido e trespassou-a com um fino objecto cortantes desinfectado com memórias. Lucidamente suspirou.

Em surdina disse entre os lábios que gostava de lá voltar...

Sem nunca ceder a um único afrouxar de corda, aquilo que na extremidade fazia de si uma autêntica boneca de madeira oca, guiou-a benevolentemente em movimentos rápidos por um caminho que tão bem conhecia... mas dentro de si ecoava o grito de que seria apenas um momento...

depois regressaria aquela subsistência.

Naquele sitio... o que era antes o seu sitio e o que estava destinado a ser seu para sempre, sentou-se inerte. Ressentiu as cordas de nylon a afrouxarem os esticões. Sentiu beijos de saudade nos salpicos salgados e observou as línguas do oceano lamberem as rochas, por debaixo dos seus pés. Em laivos de memoria foi-se recordando... mas não conseguia chorar...

aliás nunca conseguiu...

Sentada naquele sítio. Atestou-se. Num movimento bruto vindo de dentro de si atirou-se para o precipício... aquilo que na extremidade fazia de si uma autêntica boneca de madeira oca, tentou em vão esticar as cordas para a suspender naquele mergulho. Mas as cordas não aguentaram o peso morto que caia a pique. Os parafusos saltaram arrancados pela violência do esticão, lacerando as feridas fechadas...

...despenhou-se no precipício... ao cair nas águas salgadas todo o seu corpo lhe ardeu... sentia-se a curar...

Thursday, March 02, 2006

Encantada!

Já não se recorda porque se chama assim. Um dia alguém lhe explicou porque se chamava floresta encantada... mas deixou a história entranhar-se de tal maneira nas memorias que já não consegue distinguir a realidade da fantasia.
Para si era assim. Era encantada por ser habitada por seres que o seduziam. Seres que habitavam nas arvores, folhas e ramos. Leituras inventadas no musgo que o faziam perder-se em gargalhadas, e caminhos de terra percorridos em loucas corridas com aqueles que por lá passavam. Refeições tomadas e partilhadas em manjares nocturnos que duravam horas entre taças de vinho brindadas e folias até ao nascer do sol.

Um dia tomaram-no por louco. Apanharam-no desprevenido. E num queixume constante dos que não lhe queriam bem, encarceraram-no num espaço onde por tempo indeterminado iria permanecer... dentro de um quarto branco, com uma cama branca.

***

...Sentada, na sua secretária lia e relia os papeis que lhe tinham sido entregues naquela tarde. Leu o historial daquele homem. Os mais sábios já tinham ditado a sua sentença, a si cabia-lhe apenas chamá-lo à realidade... mas que realidade... a sua própria?! Retirou da estante detrás de si um manual...

Percorreu os extensos corredores brancos. Entre sobe e desce de escadas, parou em frente de uma porta branca com o numero que trazia nos apontamentos... a porta abre-se. Num canto do quarto imaculadamente branco estava ele sentado. De dentro da sala imanava um odor intenso a vegetação... cheirava estranhamente a floresta. Entrou... num monologo de palavras bem ditas de um vocabulário muito bem estudado dirigiu-se a ele... não recebeu uma resposta ou um único movimento.

***

... o sol estava a pôr-se, o alaranjando começava a dissolver-se com os verdes escalonados escurecendo-os do mais claro para o mais escuro. No topo do caminho ele inspirou... correu até terreno desmoitado no meio da floresta, e no chão a toalha de folhas de eucalipto e castanheiro gigante já estava preparada... o seu lugar era o mesmo de sempre... sentou-se, pegou na sua taça de vinho e a folia começou até ao nascer do outro dia..